UM HOMEM DE FAMÍLIA
Por Francisco Guil
Encontro-o no supermercado, fazendo compras com a família. Os filhos pequenos são saudáveis e espertos, a esposa é bonita e inteligente — percebo pelos gestos com que avalia a qualidade das maçãs. Uma família feliz, é o que se constata. Ele fala com os filhos, pergunta se preferem laranja ou bergamota, empacotam as frutas e seguem em animada conversa em direção à balança.
No ano passado eu ouvia a voz desse homem, um tanto mais apressada, mas com o timbre inconfundível, revelando que seu esquema eleitoral estava indo pro brejo por causa de uma traição. Havia pago tanto a Fulano, que deveria comprar votos para ele, mas Fulano estava comprando para Sicrano. Aos poucos o cidadão foi ficando histérico e prometendo vingança. O denunciante me trouxe a gravação, escrevi uma petição e disse-lhe que entregasse na promotoria junto com a prova. Não sei se entregou, pois não houve notícia da denúncia.
Aquele homem de família seria um criminoso perante a lei, se fosse denunciado e condenado. Diante da esposa e dos filhos, é um maridão, um paizão, um verdadeiro herói! Por que as coisas são assim, tão paradoxais?
Quando você não consegue compreender um comportamento, volte os olhos ao mundo selvagem. Você não entende por que o ladrão rouba. Por que pessoas formadas em curso superior metem a mão no dinheiro público. Por que o vereador, que ganha um salário razoável, cria um esquema de laranjas para roubar o dinheiro do contribuinte. O cidadão decente não aceita essas atitudes, revolta-se, mas não sabe o que fazer para acabar com a corrupção. Mal sabe que ele próprio teria 99% de chance (ou mais) de tornar-se um corrupto, caso ocupasse um cargo público e lhe fosse ofertado um bônus 100 vezes maior que o seu salário para assinar um documento em benefício de uma empresa corruptora.
Veja aquele “cidadão honrado”, com a família comprando comida no supermercado. Quando ele tentou burlar a lei comprando votos sabia que era crime, e mesmo assim o fez. Por quê? Aos olhos da sociedade ele é um criminoso e deveria ir para trás das grades. Mas sua família o vê como o provedor, o que traz comida para casa.
Talvez o sujeito seja ladrão de carros, sequestrador ou traficante. Mas a mulher do cidadão não é infeliz porque as atividades do marido são ilegais e prejudicam pessoas. Ele pode correr da polícia o dia inteiro e matar lentamente os jovens viciados em crack, e isso não será um problema para ela, se ao final da tarde o seu homem chegar com os pacotes do supermercado e lhe der a chave do carro para ir à pizzaria. O que importa para ela é o sucesso, não o caráter do marido.
A vida humana ainda é assim, um conjunto de animais em luta. A arte e a ciência estão nos conduzindo lentamente a um patamar mais elaborado, onde prevalecerá a justiça e a gentileza. Mas esse é o futuro glorioso, que talvez jamais atingiremos. Por enquanto somos animais em luta, no qual os espertos e os fortes prevalecem. Se quer manter-se vivo nesta selva, de alguma forma você precisa aprender as regras do jogo. Não significa que deva tornar-se um ladrão, um desses ladrões discretos que roubam sem perceber...