Percalços inescapáveis do capitalismo
Por Ana Liési Thurler (filósofa e socióloga)
Estou em Barcelona. Nesta manhã festiva de 11 de setembro, data nacional da Catalunha, leio jornais em um café. Chamam-me atenção dois artigos com pano de fundo semelhante: a natureza do capitalismo. Um dos artigos está no jornal La Vanguardía, assinado por Andy Robinson, intitulado “A corrida para a Casa Branca”. Focaliza a proposta de Trump de concluir o muro separando os EUA dos países ao sul, nas Américas. A administração Clinton construiu mil quilômetros em uma fronteira de 3.200 km. A intenção anunciada de Donald Trump é colocar um muro de 4 metros de altura ao longo da fronteira com o México, “protegendo” os estados da Califórnia, Arizona, Novo México e Texas.
O geógrafo e professor da Universidade da Califórnia Michael Dean, autor do livro Porque os muros não funcionam, diz que o esquema de controle de migrações clandestinas não é eficiente, apesar do sistema de vigilância de última geração adotado.
A construção dos mil quilômetros do muro aconteceu após a assinatura do Tratado de Livre Comércio (TLC) entre Bill Clinton e Carlos Salinas de Gortari. Todd Miller – jornalista, morador do Arizona e autor do livro Border Patrol Nation – diz: “De alto a baixo o muro tem as impressões digitais de Bill e Hillary Clinton. ”
Na verdade, o TLC propiciou ampla entrada no México de produtos estadunidenses subvencionados pelo governo dos EUA, como a carne e o milho. Retirou de camponesas e camponeses mexicanos sua fonte de subsistência. Assim, o século XXI encontra-os, indocumentados, migrando para o norte. Em torno de meio milhão de mexicanos faziam essa travessia. Com o TLC e a subvenção estatal, produtos que constituíam a base de subsistência do campesinato mexicano podem entrar no México e desmantelar a vida social e econômica de suas comunidades. Por outro lado, camponesas e camponeses empobrecidos e vulnerabilizados pelo tratado não podem atravessar o Rio Grande e se fixar em estados fronteiriços como Califórnia, Arizona, Novo México e Texas.
Em 1994, quatro milhões e meio de mexicanas e mexicanos moravam nos EUA. Vinte anos após, 12 milhões migraram. Entre eles, sete milhões estão indocumentados.
O candidato republicano Donald Trump propõe grandes deportações de mexicanos. Isso, entretanto, já é uma realidade no governo atual de Barack Obama, que deportou 2,7 milhões desde 2008. Enfim, qualquer que seja o resultado das eleições em 08 de novembro, as diferenças para as relações com o sul do Rio Grande, não serão muito diferentes.
Para o México, o impacto do TLC é forte tanto no sentido do empobrecimento dos agricultores, quanto dos setores que poderiam participar da produção tecnológica para a vigilância e segurança do muro militarizado. Enfim, muro e deportações massivas são propostas cruéis, mas não inovadoras.
No jornal madrilenho El País também de hoje (11/9/2016), Antón Costas assina o artigo “A saúde moral do capitalismo espanhol”. O autor inicia colocando a questão: as possibilidades de crescimento espanhol foram atingidas pela saúde moral do capitalismo no país?
O autor teria se deixado seduzir em um recente seminário realizado pelo empresariado espanhol, incluindo na pauta o tema ‘A ética dos negócios e das empresas? Com consciência ingênua se pergunta pela saúde moral do capitalismo espanhol que, desde 2008, se teria deteriorado. O articulista lembra que o ex-presidente da maior patronal espanhola está encarcerado por corrupção. A degradação moral mais cruel tem sido de altos financistas, distribuindo produtos contaminados, apresentando contas astronômicas, se autoconcedendo compensações vitalícias inaceitáveis – mesmo para as pessoas com menor sentido moral.
Ferir princípios éticos elementares não é prerrogativa exclusiva do capitalismo na Espanha (nem nos EUA em suas relações com seus vizinhos mexicanos). É estrutural do capitalismo e de organizações econômicas e sociais presididas pelo deus mercado multiplicaDOR Das estratificações, as desigualdades, a concentração da riqueza, a reificação, entre tantas outras coisas.
Remeto à leitura da boa reflexão feita por Richard Senett em seu livro A corrosão do caráter.